quarta-feira, 12 de julho de 2017

Trens Blindados: Os Fantasmas da Morte


A pintura camuflada com tons de verde e azul confundia os trens blindados com a natureza paulista. Autor desconhecido.

Uma parceria Orgulho de Ser Paulista e Museu Ferroviário Paulista. Conheça os projetos!


"Dois quilômetros e o inimigo à vista. Os homens avançavam, certos de que era um trem de mercadoria, ou de víveres (realmente, como estava disfarçado), e, em posição de atirar, ajoelhavam pelos trilhos. As nossas metralhadoras picotaram os inconscientes. A primeira impressão foi dolorosa. Pungente mesmo. Presenciar umas cenas destas" (Fernando Machado, 1933).

Com seus mais de 7 mil quilômetros de ferrovias, São Paulo tinha todo o seu sistema de transporte baseado nas estradas de ferro. Atingindo quase todas as cidades do Estado, transportavam de passageiros a cargas de todos os tipos; essenciais para os paulistas, eram de importância vital e estratégica. Com a eclosão da Guerra Paulista, em julho de 1932, não poderia ser diferente: desde a primeira semana de conflito, passaram a ser usadas para transporte de tropas e suprimentos para as linhas de combate.

Na Frente Sul, que combatia na divisa com o Paraná, desde cedo os paulistas enfrentaram dificuldades. Logo, a cidade de Itararé havia sido invadida, destruída e tomada pelas tropas federais, que rumavam em direção a Itapetininga para dali seguirem à capital e tentarem depor o governo estadual e os líderes militares. Mas os paulistas não estavam dispostos a entregar sua terra e sua luta de maneira tão fácil assim, e logo, a resistência armada passou a dificultar o avanço das tropas inimigas pelo território paulista. De Itararé, os constitucionalistas recuaram para Ibiti, em seguida para a região da estação Engenheiro Maia e finalmente para Buri, onde fincaram o pé.

Mas, atingindo posições estratégicas em quase todas as regiões de São Paulo, havia também um potencial bélico a ser explorado nas ferrovias. A Frente Sul sofria com a falta de melhores armamentos para combater os soldados brasileiros, pois todas as armas pesadas da Força Pública de São Paulo haviam sido confiscadas quando Getúlio Vargas deu o golpe de estado, em 1930, já prevendo uma possível reação paulista. Surgiu então, no final de julho, a ideia de criar uma verdadeira máquina ferroviária de guerra: um trem blindado. E foi assim, numa parceria entre a Escola Politécnica (hoje, USP), IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) e E. F. Sorocabana, que surgiu o TB-1, ou, Trem Blindado nº 1. Sua concepção partiu do engenheiro francês Clèment de Baujaneau, que vivia em São Paulo e chegou a conhecer os trens blindados europeus utilizados na Primeira Guerra Mundial, e sua construção a cargo do engenheiro voluntário Augusto Ferreira Velloso, que abandonou seu escritório para auxiliar a Politécnica na construção de veículos blindados para a Guerra.

O TB-1, o primeiro trem blindado paulista; sua tripulação posando defronte à primeira grande máquina de guerra de São Paulo, na cidade de Mairinque. Autor desconhecido.

Construído na oficina ferroviária de Sorocaba, o TB-1 era composto de uma locomotiva a vapor e um vagão, ambos blindados; no interior do vagão, localizavam-se soldados que através de pequenas aberturas posicionavam suas metralhadoras Hotchkiss de 7 mm. Acima, no teto, dois potentes faróis movidos pela própria locomotiva iluminavam totalmente as trincheiras inimigas. O relato com o qual iniciamos o texto é justamente sobre uma das primeiras vezes - senão a primeira - em que o TB-1 foi utilizado em Buri, sempre causando pânico dentre as mal preparadas tropas brasileiras, que nunca haviam visto arma de destruição tão potente como aquela. Comandado pelo primeiro-tenente Affonso Negrão, nas cercanias das estações de Aracassu, Buri, Eng. Hermillo, Rondinha e Victorino Camillo, e ainda sem estar completamente finalizado, conseguiu aniquilar completamente as forças inimigas em Rondinha e retomar a cidade paulista de Buri, no dia 26 de julho de 1932.

O sucesso foi tanto que logo foi construído a segunda unidade, utilizando-se a locomotiva nº 216, batizada de TB-2, e o TB-1 voltou para a oficina para ser ainda mais equipado e transformado no TB-3. Agora, os trens blindados assumiam as características básicas finais, com não mais um, mas dois vagões blindados (um a frente e outro atrás da locomotiva), repletos de metralhadoras Hotchkiss, e agora ganhando também nas extremidades dois canhões Krupp ou Schneider de 75 mm, com imenso poder de fogo e capacidade de defender-se, já que a blindagem era extremamente resistente, feita de um "sanduíche" de peças de madeira de faveiro, extremamente dura, envolta por chapas de aço; onde não fosse possível a instalação da madeira, era coberto por chapas de aço de grosso calibre. Não haviam portas ou janelas: a visualização externa era feita por 3 pequenas aberturas, que também serviam para a entrada de ar, e a comunicação com os maquinistas era feita através de um telefone, para as ordens de "parar", "avançar" ou "retroceder"; já a entrada era feita por um pequeno buraco no chão dos vagões. Um dispositivo parecido com um calço fixava o veículo no solo, para que não se movimentasse durante os tiros.

Com uma tripulação de apenas 18 pessoas, sendo 3 responsáveis pela operação do trem e 15 pelo manuseio das armas. Não era fácil ser parte da equipe dos TBs, já que o calor no interior dos mesmos era imenso, com todos os combatentes trabalhando somente de calça. Os operadores das metralhadoras também tinham dificuldades devido ao pequeno espaço, muitos deles ganhando cicatrizes nos braços devido aos cartuchos de munição, que ricocheteavam nos mesmos. Armas comuns não causavam qualquer tipo de dano ao trens, que apenas poderiam ser danificados com granadas mais potentes e bombas, o que os brasileiros jamais conseguiram. Assim, TB-2 e o agora TB-3 operavam na Frente Sul, na região de Buri, principalmente em locais próximos as estações de Engenheiro Hermillo, Lidiana e Aracassú, onde da linha férrea era possível avistar livremente os morros onde o exército adversário estava posicionado, evitando o avanço do mesmo no território paulista.

Um dos vagões do TB-4 recém concluído, no interior da oficina ferroviária de Rio Claro. Créditos: Cia. Paulista de E. F..

O imenso sucesso das duas primeiras unidades motivou a Politécnica e o IPT a se juntarem com engenheiros das ferrovias Cia. Mogiana de E. F. e Cia. Paulista de E. F., outrora grandes rivais pela disputa de cargas na região de Ribeirão Preto, mas que deixaram qualquer desavença de lado para lutar em prol da Causa Paulista. Foram construídos então o TB-4 pela "Paulista" na oficina de Rio Claro, e o TB-5 pela "Mogiana" na oficina de Campinas, ambos para atender os combates na divisa com Minas Gerais nas linhas dessa última empresa. Ambos possuíam algumas melhorias em relação aos dois primeiros, sendo ainda mais avançados tecnologicamente. As locomotivas empregadas, as de nº 730 e 732, eram ligeiramente menores que as anteriores, o que permitia uma melhor manobra dos mesmos; os vagões ganharam extremidades rebaixadas, onde os canhões, agora instalados em torres giratórias, foram instalados, permitindo que os trens pudessem atacar todos os lados ao mesmo tempo, mantendo-se a mesma tripulação padrão anterior de 18 pessoas. Também ganharam pintura camuflada, com dois tons de verde escuro para se confundir com a mata e um de azul claro para fazer alusão ao céu, ajudando no disfarce do mesmo enquanto não estava sendo utilizado.

Finalizados no começo de agosto, ambos foram enviados para linhas próximas da divisa com Minas Gerais, onde se desenvolveram muitos dos combates da guerra. O TB-5 foi sediado em Mogi Mirim, estrategicamente fazendo incursões noturnas até Itapira e Eleutério, locais onde forças inimigas estavam posicionadas. Ambas as unidades ajudaram a bloquear totalmente a entrada de tropas em território paulista naquela região, tendo as mesmas só adentrado um pouco mais acima, na região de Mococa. 

O TB-5, já completo e pronto para ir para as linhas de combate, visto em foto oficial em Campinas. Créditos: Cia. Mogiana de E. F..

Por fim, eis que surge a última unidade, batizada de TB-6: o maior e mais potente de todos os trens blindados, também o único apto a operar nas linhas de bitola larga, construído pela oficina ferroviária do bairro do Brás, em São Paulo capital, para uso da E. F. Central do Brasil. Voltado a trabalhar no Ramal de São Paulo, linha férrea que liga a capital até o Rio de Janeiro cortando todo o Vale do Paraíba, participou de combates em locais como Cruzeiro, Queluz, Resende e Itatiaia, onde ganhou o apelido pelo qual todos ficaram conhecidos: "O Fantasma da Morte". Sorrateira, a unidade chegava silenciosamente na calada da noite, em meio ao combate, e com seus potentes holofotes iluminava todo o campo de batalha, denunciando onde estavam alojadas as tropas inimigas; estas, tomadas de pavor, saiam correndo, em total desordem, deixando pra trás suas posições e armamentos, enquanto eram alvejadas pelos paulistas. Este, ao contrário dos outros, era composto não de dois, mas de três vagões, também completamente blindados e com estrutura reforçada, e incorporando neles todas as melhorias anteriormente desenvolvidas nos demais TBs. Conseguiu seu intento na Frente Norte, a que jamais se rendeu e nunca deixou os brasileiros invadirem São Paulo pelo Sul de Minas Gerais e Rio de Janeiro.

O grande e mítico TB-6, que causou pânico e terror em suas operações no Vale do Paraíba. Nota-se o canhão, posicionado dentro da parte frontal do primeiro vagão. Autor desconhecido.

Terminada a Guerra Paulista, em meados de outubro, uma das condições impostas pelo governo federal foi que todo o armamento pesado dos paulistas fosse confiscado ou desmontado. Todos os trens blindados foram recolhidos a suas oficinas, onde tempos depois foram desmontados, e as locomotivas utilizadas retornaram para as condições originais, voltando ao tráfego convencional. Como memória das mais potentes armas de guerra utilizadas num conflito dentro do território de São Paulo. Repousam hoje, no alto da estação de Buri, os dois holofotes do antigo TB-3, tudo o que restou dos Fantasmas da Morte, em memória de um dos pontos mais célebres da engenharia militar paulista, e de todos aqueles que participaram dos combates. 

Aproveitamos para convidar nossos curtidores para curtir as páginas do museu que contribuiu para esta pesquisa, e que trabalha em prol do resgate da história e cultura ferroviária de São Paulo! 
https://www.facebook.com/museuferroviariopaulista/. Conheçam, participem e contribuam!

E divulgamos também a página do escritório do engenheiro que desenvolveu os trens blindados, que ainda existe! http://www.augustovelloso.com.br/index.php?idioma=pt

Por Thales Veiga.

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