domingo, 27 de agosto de 2017

Canais de Santos: A História de Um Engenheiro Que Salvou Uma Cidade

Não há como falar de Santos sem passar por seus canais - presentes da história e na alma santista, estão intimamente ligados ao desenvolvimento de São Paulo.

Se hoje, Santos é uma cidade grande, uma metrópole nacional se encaminhando para meio milhão de habitantes e capital da Baixada Santista, no final do século XIX tudo era muito diferente de hoje. A cidade se resumia então aos atuais bairros do Centro, Valongo e Paquetá, com algumas chácaras espalhadas pelo resto da ilha. Nesta parte da cidade, no lado oposto do mar e com morros logo atrás, era um terreno seco, em contraste com o restante da ilha, que era um terreno pantanoso em mangue, impróprio para construções. Foi neste lugar que Santos se desenvolveu desde sua fundação, em 1546, até meados do século XIX, quando tudo mudou.

A inauguração da ferrovia entre Santos e Jundiaí é um divisor de águas no Estado de São Paulo, pois foi a partir dela que iniciou-se um boom econômico que perdurou até a década de 1930, com diversos fatores a ele ligados, como a industrialização, a imigração em massa, o surgimento e crescimento de cidades, entre outros. E, como sempre foi, todo tipo de mercadoria e passageiro que vinha para São Paulo embarcava ou desembarcava em Santos, como o café para exportação, as máquinas que vinham equipar as novas fábricas em São Paulo capital, e os imigrantes, sobretudo europeus e japoneses, que vieram "fazer a América" em nosso estado.

De um dia para o outro, a população de Santos se viu diante de uma movimentação de produtos e pessoas muito grande, inimaginável em anos anteriores. A situação da cidade era precária: ruas de terra, construções com piso de madeira (o que as tornava úmidas) e falta de sistema de esgoto e de escoamento da água das chuvas. A existência do porto, que na época não passava de uma série de trapiches de madeira, só piorava a situação; os navios da época eram muito sujos, e em seus porões haviam ratos e morcegos, bem como os marinheiros e passageiros do mundo inteiro que aqui aportavam traziam doenças e muitas delas contagiosas, que acabavam sendo espalhadas pela população. Para completar, a existência de extensos pântanos e manguezais nas áreas vizinhas da cidade contribuíam para a proliferação de mosquitos e doenças. A situação era extremamente caótica, com epidemias sucessivas de peste bubônica, peste negra, impaludismo, febre tifoide e disenteria; mas a gota d'água foi a grande crise de febre amarela, entre 1890 e 1900, que causou quase 7 mil mortes, na época, metade da população santista. Nas palavras do cônsul do Reino Unido, Richard Burroughs, Santos "é uma cidade terrível, que arfa de calor como uma caldeira, pestilenta e doentia" - ironicamente, seria ele, anos depois, um dos responsáveis pela construção do Canal do Panamá.

Aliado a isto, havia uma necessidade enorme de crescimento da área urbana, pois a população estava aumentando e era obrigada a morar em palafitas em condições de saúde e higiene precárias, bem como atender aos interesses dos novos empreendimentos trazidos pelo progresso à São Paulo, como hotéis de turismo, como o Balneário e o Internacional e o porto organizado, construído em 1892 pela Cia. Docas de Santos. Em caráter emergencial, o governo de São Paulo, através de Vicente de Carvalho, que além de político é um dos 3 maiores poetas parnasianos da Língua Portuguesa, cria a Comissão de Defesa Sanitária de Santos em 1895, que desenvolveu um projeto considerado caro. Dez anos depois, o governo reorganiza a comissão, facilitada pela presença do mesmo Vicente de Carvalho como secretário municipal de obras, contratando o engenheiro sanitarista Francisco Saturnino de Brito e o engenheiro civil Miguel Presgrave para, inicialmente, projetar um sistema de coleta de esgoto, livrando assim as ruas das terríveis fossas de esgoto a céu aberto. A Comissão então desenvolve o trabalho definitivo, que começa a ser implantado no mesmo ano, e o contrato é ampliado também para os sistemas de drenagem e de escoamento de águas fluviais e pluviais, eliminando de vez os problemas da cidade, já que o abastecimento de água potável também estava sendo implantado, pela Cia. City.

O desafio de Saturnino


Suja, mal cheirosa, feia e repleta de doenças: assim era Santos até fins do século XIX. Créditos: Acervo Novo Milênio.

Com um problema tão extenso e complexo e que abrangia várias áreas, era preciso executar os trabalhos de uma forma que resolvesse a todos eles de uma única vez. Saturnino, que estudou na França e Reino Unido anos antes, viu na época em que morou na Europa desde uma série de inovações tecnológicas caras a soluções simples para o problema do saneamento básico, e teve que, na medida do possível, importar muitas das ideias para cá, visto que nada deste porte havia sido feito no Brasil antes disto, bem como não haviam indústrias que pudessem produzir os equipamentos necessários.

Saturnino apostava num sistema que ia do "micro" ao "macro"; portanto, seguindo seu pensamento, de nada adiantaria criar um sistema de esgotos excelente se dentro das casas continuaria existindo problemas. Como primeira medida, recomendou à prefeitura o incentivo à substituição das antigas construções da época colonial, com piso de madeira e paredes úmidas, por construções em tijolo, e introduziu em outras uma série de melhorias para melhor circulação do ar e novas janelas; para iniciar o trabalho de implantação do esgotamento, leva sobretudo à população mais pobre vasos sanitários e instalações sifonadas, que impedem que o mau cheiro retorne para dentro da residência. Não seria apenas uma questão de conforto, já que o mau cheiro, na verdade, advém de gases tóxicos fruto da ação de bactérias e que trazem sérios danos ao organismo humano se inalados em grande quantidade, o que também contribuía para a proliferação de doenças em Santos. Em seguida, importou também alguns tipos de caixas de esgoto para uso doméstico, que, assim como os vasos sanitários e sifões, foram comprados na Europa pela Comissão e distribuídos aqui para a população carente, numa ação mais pessoal de Saturnino que própria do serviço para o qual foi contratado, pois, segundo dizem, o engenheiro muitas vezes abria mão do dinheiro em detrimento do bem estar da população.


Cartão postal de São Vicente por mais de 100 anos, o que pouca gente sabe é que a Ponte Pênsil foi criada para levar o esgoto para o mar. Créditos: Acervo Novo Milênio.

Saindo das residências para as ruas, era necessário então interligar o esgoto doméstico, que saia das casas e prédios, em uma rede que o levasse embora. Ainda seguindo a ideia "do micro para o macro", o sistema era composto de tubulações em ordem hierárquica, onde certo tubo caia num tubo maior, que o levava a um maior ainda. Todo este sistema possuía poços de visitação, os populares bueiros, algo nada comum na época. Todo o esgoto coletado convergia para uma única tubulação, onde, através de três bombas localizadas nos extremos da então área urbana (uma no porto, uma no Valongo e outra no Paquetá), era pressionado e chegava através das atuais avenidas Conselheiro Nébias e Francisco Glicério à Estação Elevatória do José Menino, ao lado do atual Parque do Orquidário, já perto da divisa de São Vicente. Lá, através de uma série de maquinários caros, que, como mencionamos, não eram fabricados aqui, o esgoto era literalmente elevado para correr por gravidade até o ponto onde seria lançado no mar. Vale lembrar que um fator que dificultava a obra era o fato de que Santos é uma cidade totalmente plana, ou seja, não havia como o esgoto correr por gravidade, como ocorre em outros lugares. 

Por fim, era preciso completar a última etapa do processo: o lançamento do esgoto no mar. Saturnino desejava que ele fosse lançado o mais longe possível para não poluir as águas usadas pela população, e para isto, já imaginando um crescimento futuro da área urbana e estudando a movimentação das ma´res, decidiu que este ponto de lançamento deveria ser localizado em um morro, mais especificamente na Ponta do Itaipu, entre São Vicente e Praia Grande, uma área imprópria para habitações devido ao terreno (e, de fato, permaneceu desabitada e hoje é um parque estadual) e onde o esgoto lançado não voltaria para as praias. Entretanto, havia um problema significativo: este local se localizada fora da ilha; era necessário, então, levar o esgoto por uma série de tubulações por cima do mar até o continente, o que demandava a construção de uma ponte. Em 1910, tendo em vista a popularização de pontes suspensas nos Estados Unidos, Saturnino e Presgrave decide que a travessia seria feita por uma neste estilo: nascia assim a famosa e centenária Ponte Pênsil, construída entre 1909 e 1913 num projeto em parceria da Cia. Trajano de Medeiros com uma firma alemã, que suportava duas tubulações de esgoto de 1 metro de diâmetro, e, por cima, um tabuleiro de madeira para a passagem de automóveis, criando um vão de 180 metros transposto de uma única vez, e que por muito tempo foi um dos maiores da América Latina. Hoje símbolo da cidade de São Vicente, a construção da ponte permitiu também a ligação por estrada com o Litoral Sul Paulista, aliado com a ferrovia inaugurada no mesmo ano, motivando o crescimento de cidades como Praia Grande, Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe.

Hora de canalizar


As obras do Canal 1, tendo ao lado os guindastes da pequena ferrovia construída exclusivamente para o transporte de pedra e terra. Créditos: Acervo Novo Milênio.

Durante o início das obras da implantação do sistema de esgoto, que foram realizadas entre 1905 e 1914, o governo estadual ampliou o contrato à Comissão de Defesa Sanitária de Santos para incluir nas obras um segundo sistema, desta vez destinado à coletar as águas das chuvas, dos rios e drenar as áreas pantanosas. O visionário Saturnino foi além, e prevendo a ocupação urbana na totalidade da ilha, algo impensável para aquela época, dividiu toda a área da cidade, incluindo os mangues e pântanos, em zonas, onde dentro de cada zona, toda a água coletada, seja ela advinda dos pequenos rios existentes, da chuva ou do terreno alagadiço, deveria ser conduzida para o mesmo local. Para a captação destas águas, Saturnino idealizou o que hoje é considerada a sua maior obra prima e um dos símbolos da cidade de Santos: os famosos e icônicos canais. 

Com obras iniciadas em 1906, os canais seriam enormes valas destinadas à condução das águas, mas iriam além de meros buracos no solo. Saturnino traçou um eixo meridional na ilha, definindo que ao sul do mesmo, as águas seriam escoadas para o oceano, e, ao norte, para o Canal do Estuário, que separa a Ilha de São Vicente da Ilha de Santo Amaro e do continente. Haveria também um sistema de comportas que permitiriam que, em dias de chuva, os canais fossem cheios e a água liberada gradualmente para não causar a destruição das praias, bem como o contrário, evitando que em maré cheia a água do mar invadisse a cidade. Permitia também, se abertas em casos emergenciais, ajudar na vazão do Canal do Estuário, conduzindo as águas para a praia e evitando enchentes no Centro de Santos. A ideia de Saturnino ainda ia além, com os canais projetados afim de acomodar serviços de navegação por pequenos barcos.


Apenas a construção dos 5 primeiros canais ocasionou a movimentação de mais de 16 mil metros cúbicos de terra, num trabalho em boa parte braçal e pouco mecanizado. Créditos: Acervo Novo Milênio.

As obras, de grande porte, motivaram grandes movimentações de terra. As pedras utilizadas para a construção dos canais e pontes vinham de pedreiras localizadas em São Vicente, que também atenderam à construção da Ponte Pênsil, e para tal, foi implantada pela Comissão uma pequena ferrovia exclusivamente para o transporte de material, dada o volume da obra. Todos os canais e pontes, bem como as galerias de águas pluviais, que coletam as águas nas bocas de lobo e as destinam para os canais ou para o porto, foram feitas em concreto armado, sendo uma das primeiras obras no país com este tipo de construção. O principal elemento do sistema era o Canal 1, o mais longo de todos, que se iniciava na praia nas proximidades da Estação Elevatória de Esgoto, no bairro do José Menino, e percorria os bairros de Marapé, Vila Mathias e Vila Nova até desaguar na frente do Mercado Municipal, onde seria formada a chamada "Bacia do Mercado", destinada a receber embarcações que abasteceriam de peixes e frutas o mercado e que chegariam lá através do canal, totalmente navegável. O Canal 1 teria, além das funções mencionadas, o papel de absorver as águas do Ribeirão dos Soldados, um pequeno riacho estreito, que dependendo da época do ano corria sentido praia ou sentido centro, deixando para trás uma enorme área insalubre. Outro ponto do projeto de Saturnino é que os canais seriam ocupados nas suas margens por avenidas largas, variando de 30 a 35 metros, e que serviu para nortear o projeto de urbanização da cidade, do qual falaremos mais adiante. Inaugurado com grande festa em 27 de agosto de 1907, o Canal 1 hoje percorre as avenidas Pinheiro Machado, Rangel Pestana e Campos Salles.

Em seguida, foi inaugurado o Canal 2, em 1910, correndo paralelo ao Canal 1 e atendendo aos atuais bairros da Pompeia, Campo Grande e Vila Belmiro, na atual Av. Bernadino de Campos; em 1911, são inaugurados outros dois canais menores saindo do Canal 1 em direção ao morro, que Saturnino chamou de "canaletes", sendo um ao lado da Estação Elevatória no José Menino, destinado a receber as águas do Córrego Cachoeirinha, e outro destinado a drenar o atual bairro do Jabaquara. ; o canal do José Menino, hoje chamado de Canal 9, a Av. Barão de Penedo; por fim, o canalete do Jabaquara, hoje Canal 10, a Av. Francisco Manoel. Ainda no mesmo ano é inaugurado o Canal 4, outro apto a receber navegação, onde também em caso semelhante ao Mercado Municipal foi criada a Bacia do Macuco, uma espécie de "estacionamento para barcos"; ele também tinha uma outra função específica, levar doentes que chegavam nos navios direto para o hospital Guilherme Álvaro por barcos, sem ter que passar pelo meio da cidade e consequentemente transmitir doenças para a população. Finalizando as obras conduzidas pela Comissão, foram abertos o Canal 8 na Av. Moura Ribeiro em 1912, e o Canal 3 na Av. Washington Luiz e Rua Braz Cubas em 1913. Outros dois canais projetados por Saturnino foram construídos anos depois, conforme a expansão da cidade, sendo eles os canais 5 (Av. Almirante Cochrane) e 6 (Av. Joaquim Montenegro), entregues em 1927 e 1917, respectivamente.


A inauguração do Canal 1, visto aqui no trecho da Av. Rangel Pestana, com a presença do presidente de São Paulo, Jorge Tibiriçá, e do engenheiro Saturnino de Brito, saudado pela população, visto de chapéu panamá na frente do barco. Créditos: Acervo Novo Milênio.

Saturnino não restringiu seu projeto somente aos canais e galerias, projetando também diversos modelos de pontes, muitas delas em concreto armado, bem como as escadarias de acesso aos barcos. Como bom conhecedor da natureza, tinha uma visão muito a frente de seu tempo, se preocupando muito com a questão ambiental e conhecendo os benefícios do plantio de árvores. Idealizou então o plantio de flamboyants e outras árvores de copa grande ao longo dos canais, que ajudariam tanto na absorção de água quanto impedindo que a terra cedesse pra dentro do canal. As árvores, fornecendo sombra, também ajudariam a diminuir as temperaturas tanto para os habitantes da cidade quanto para as peças em concreto, evitando problemas quanto à dilatação.

Com os canais correndo em boa parte paralelos com as avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias, foi possível traçar eixos de urbanização da cidade, facilitando também a instalação das linhas de bondes elétricos, que começaram a ser implantados em 1909. Foi partindo deste princípio que Saturnino desenvolveu um plano de urbanização pra Santos, onde pela primeira vez apareceram os Jardins da Orla, que começaram a ser construídos depois pela prefeitura, e um sistema de parques e praças que ajudariam a diminuir a temperatura da cidade, e, principalmente, na absorção de água pelo solo, para evitar erosão. Destaca-se o projeto da Av. Afonso Penna, que incluiria um parque linear. A Afonso Penna, em conjunto com a Francisco Glicério, são literalmente o divisor de águas, onde, sendo o ponto mais alto, divide as águas que correm para a praia das que correm para o Estuário. A avenida foi feita apenas décadas depois, e hoje cumpre o mesmo papel planejado. Um outro destaque das obras é que o custo final foi bem abaixo do previsto, e Saturnino devolveu para os cofres públicos todo o dinheiro que sobrou - um caso único no país.


Outra vista da inauguração do Canal 1 - posteriormente, a avenida foi alargada e também recebeu o plantio de árvores. Créditos: Acervo Novo Milênio.

Com a conclusão dos dois projetos de Saturnino de Brito, Santos passou da condição de um lugar miserável e insalubre para uma cidade nova, moderna e bonita, que passou a atrair moradores e turistas de todas as classes sociais, e se desenvolveu profundamente nas décadas seguintes. Em 100 anos, a cidade portuária se transformou numa das mais importantes metrópoles econômicas e educacionais do país, sendo hoje, reconhecida como a melhor cidade grande do Brasil para se morar e figura presente nos rankings de qualidade de vida. O projeto de Saturnino se manteve inalterado durante décadas e até hoje é a base para todo o sistema de esgoto e águas pluviais da cidade, recebendo melhorias nas décadas de 1960, com a construção de mais 5 canais, 1970, com a inauguração de um novo emissário submarino, e por fim, na última década, com um projeto complexo desenvolvido pela Sabesp, a atual operadora do sistema.

A memória de Saturnino de Brito é preservada num monumento implantado numa de suas criações, o Jardim da Orla, e a história da Comissão de Defesa Sanitária de Santos e de uma das maiores obras de engenharia do país no Palácio Saturnino de Brito. No centenário da inauguração do Canal 1, em 2007, em meio às festividades da cidade, foi oficializado o tombamento de todo o sistema original, incluindo a estação elevatória, as estações de bombeamento, a Ponte Pênsil e os canais projetados por Saturnino como patrimônio histórico de São Paulo, evitando de vez que fossem destruídos ou cobertos, como houveram ideias anteriores de cobri-los com corredores de ônibus e vagas de estacionamento. Após um processo de restauro e que visou a eliminação de ligações clandestinas de esgoto, os canais hoje voltaram a ser um símbolo da cidade, de tal forma que a população costuma usá-los como ponto de referência mais que os próprios nomes dos bairros onde vivem. Pois, como diz o hino não oficial da cidade: da Ponta da Praia ao José Menino, cruzar os teus canais, é esse o meu destino.


Imagem de satélite atual das cidades de Santos e São Vicente, vendo-se o sistema de canais idealizado por Saturnino e continuado pelas prefeituras das duas cidades. Créditos: Orgulho de Ser Paulista.

Nas palavras do jornalista Carlos Mauri Alexandrino, "Impossível imaginar os canais tapados, com carros percorrendo o caminho que é das águas - seu objetivo fundamental sempre foi o de ligar o oceano ao outro lado da ilha, de modo a secar a terra. Devemos boa parte de nosso território à existência dessas velhas vendas cortadas sobre a carne da cidade. Veias abertas de Santos, uma literalidade da idéia de Cortazar".

Saturnino por trás da obra

O monumento à Saturnino de Brito, inaugurado em 1963, retrata o engenheiro segurando a planta com o projeto dos canais admirando os jardins da praia, também uma criação sua. Créditos: Mais Santos.

Francisco Saturnino Rodrigues de Brito nasceu em Campos, no estado do Rio de Janeiro, em 1864, e foi na cidade fluminense que desenvolveu seu primeiro projeto de um sistema de esgoto, após seus estudos na Europa e Estados Unidos. Estudioso notável, foi pioneiro nacional da engenharia sanitária, engenharia ambiental e urbanismo, desenvolvendo projetos para sistemas de água em cidades como Pelotas, Rio Grande, Rio de Janeiro, Natal e Recife, além do ambicioso projeto de Santos. Publicou dezenas de livros detalhando suas ideias e obras, incluindo o "Controle das Enchentes", falando sobre problemas bastante atuais e que ele previu há mais de um século, e, poliglota, um livro totalmente em francês, o "Le Tracé Sanitaire des Villes", referência até hoje em universidades do mundo inteiro. Inventou ainda o tanque fluxível, para tratamento de esgoto, utilizado largamente por mais de 60 anos. Como urbanista, desenvolveu o projeto de Vitória, capital do Espírito Santo.

Em São Paulo, outro projeto de destaque de Saturnino de Brito: o Rio Tietê. Em 1922, Saturnino foi contratado pela Comissão de Melhorias do Rio Tietê para desenvolver um projeto urbanístico, e idealizou que toda a área alagável de suas margens deveria ser transformada em um parque linear, e nas intersecções dos demais rios na capital, seriam construídos lagos para regular a vazão de água. Desta forma, hoje São Paulo praticamente não teria inundações e ainda ganharia um Tietê despoluído e uma imensa área verde, que seria cerca de 6 vezes maior que o Central Park, em New York. Infelizmente, o projeto de Saturnino não foi executado e foi substituído pelo de Prestes Maia, que projetou as Marginais. Saturnino faleceu quando executava o projeto de esgotos de Pelotas, em 1929, aos 65 anos de idade, deixando um legado imenso de obras e conhecimento que dificilmente será superado em importância e inovação.

Figura conhecida e reverenciada em Santos, o engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, autor do projeto dos canais e sistema de esgoto da cidade.

Confira mais imagens dos Canais de Santos

Três ícones da paisagem santista: os canais, as muretas e os prédios tortos, vistos aqui na confluência do Canal 4 com a praia. Créditos: Adriana Barci Peri.

A Estação Elevatória do José Menino operou interruptamente de 1907 a 2010, quando foi substituída por uma mais nova (o prédio de vidro) e hoje encontra-se preservada como um centro de memória da Sabesp. Créditos: Sabesp.

Vista clássica do Canal 3, o mais verticalizado de todos, onde as copas das árvores formam um túnel natural - refúgio agradável em meio à cidade grande.

Apesar da navegação não mais existir em sua totalidade, hoje, os trechos que conectam a Bacia do Macuco e a Bacia do Mercado ao Estuário seguem em funcionamento, sobretudo para as catraias que fazem o transporte de passageiros até o distrito de Vicente de Carvalho, em Guarujá. Créditos: Litoralbus.

Hoje, além de continuarem com seu papel vital para a existência da cidade, os Canais se tornaram verdadeiros cartões postais. Créditos: André Jaconi.

Por Thales Veiga.

sábado, 19 de agosto de 2017

Bandeirantes Genocidas?


O ódio de alguns grupos atuais aos bandeirantes advém de uma campanha marqueteira que buscou desqualificá-los e destorcer fatos da história. Créditos: Folha.

Você certamente já ouviu falar esta famosa frase, ou ainda que "as Bandeiras tiveram dois lados" e que "os índios foram dizimados pelos portugueses". Vamos desfazer estes e outros mitos, e para começar: você sabe o que foram as Bandeiras?

Para entendermos as Bandeiras, primeiro temos que entender a própria formação do território paulista. Como já vimos em textos publicados aqui mesmo na página (e que deixarei o link de alguns ao final deste), os primeiros europeus chegaram ao que viria ser chamado de São Paulo por volta do fim dos anos 1400, oriundos não só de Portugal, mas de países como Espanha, Holanda e territórios que viriam a formar Alemanha e Itália. Alguns destes primeiros habitantes paulistas foram Bartolomeu Fernandes, chegando aqui em 1497, e João Ramalho, náufrago de 1513.

Ao contrário do que se pensa, os indígenas não se constituíam de um único grupo, nem muito menos eram totalmente desprovidos de uma estrutura de civilização. Haviam diversas nações, cada qual com seus costumes e seu governo, e um dos maiores erros que cometemos é generalizar todos como iguais. Em São Paulo, o território estava distribuído entre os Carijós (Cananeia), Guaianases (Vale do Paraíba), Puris (Serra da Mantiqueira), Tupinambás (litoral de Bertioga ao RJ) e Tupiniquins (litoral de Cananeia a Bertioga e Planalto de Piratininga), além de esparsas tribos no "Sertão Paulista". Destas nações, Tupiniquins e Tupinambás se encontravam em guerra há anos, principalmente pelas divergências ideológicas (os Tupinambás defendiam, por exemplo, o canibalismo e a poligamia).

Os europeus, quando aqui chegaram, passaram não a combater os nativos, mas sim se integrar no dia a dia deles. Bartolomeu Fernandes, por exemplo, aliou-se aos Carijós e tornou-se rapidamente um importante líder local; João Ramalho, após um breve contato com os Guaianases, passou a viver com os Tupiniquins, construindo uma estreita amizade com o líder Tibiriçá: juntos, os 3 fundaram São Vicente em 1517. Quando da chegada da esquadra de Martim Afonso, havia um temor que a ocupação pudesse gerar um conflito com os nativos, fato que não se concretizou graças ao trabalho de João Ramalho. Naqueles primeiros anos, Martim Afonso e seu irmão Pero Lopes, João Ramalho e Tibiriçá passaram a trabalhar juntos para a constituição de um lugar mais civilizado. Martim Afonso, ao chegar, oficializou como vila do Reino Português o assentamento de São Vicente e a aldeia dos Campos de Piratininga (hoje, São Paulo), ambas em propriedade Tupiniquim.

Porém, nem tudo eram flores. Bartolomeu Fernandes, descontente com o governo oficial português de Martim Afonso, retornou a Cananeia, onde juntamente com os Carijós (de origem mestiça, advindos do sul do país) e com os espanhóis, liderados por Ruy Garcia de Moschera e tendo como capital a vila de Icapara (hoje, um bairro de Iguape), organizaram a Guerra de Iguape, invadindo, saqueando e destruindo as vilas de São Vicente e Piratininga entre 1534 e 1536.

A oficialização da aldeia de São Vicente como vila por Martim Afonso em 1532 é um dos símbolos da parceria entre europeus e Tupiniquins, formadora da identidade, cultura e território paulistas com reflexos até os dias atuais. Créditos: Benedito Calixto.

Logo após, houve a chegada dos primeiros jesuítas em terras vicentinas. A ordem, fundada em 1534 e oficializada em 1540, era um braço da Igreja Católica que visava a conversão dos indígenas para divulgação e ampliação da atuação da igreja no novo continente. Desembarcaram em terras nacionais em 1549, na Bahia, chegando a São Paulo no mesmo ano. A atuação no território paulista foi liderada por José de Anchieta e Manoel da Nóbrega, e um tanto diferente das demais. Ao contrário do que ocorreu em outros lugares, sobretudo no Sul, em São Paulo os jesuítas não conseguiam exercer o papel de liderança dominadora que almejavam, e aliado a isto, os espíritos conciliadores de Nóbrega e Anchieta burlavam as determinações da Igreja e se aliaram a João Ramalho, Martim Afonso e Tibiriçá na constituição do novo país. Tal fato gerava amplo descontentamento por parte do governo português, que passou a olhar para os paulistas (data desta época o apelido) com maus olhos e cautela, e ocasionou algumas represálias como a retirada do título de vila de Santo André (comandada por Ramalho). As tenções aumentaram quando o governador paulista nomeou João como chefe militar, em 1562.

Os índios Tupinambás, inimigos declarados há anos e vendo o perigo da expansão dos Tupiniquins aliados aos colonizadores, se juntaram aos Aimorés e Guaianases na "Confederação dos Tamoios", criada em 1556 e que visava a completa aniquilação dos inimigos. Tal fato se agravou quando num dos embates, os Tupiniquins venceram um grupo de Tupinambás e levaram como prisioneiro o chefe Cairuçu para Santos, que acabou por falecer na prisão logo após. São Vicente então passou a ser atacada também pelos Guaianases, cujo chefe era Piquerobi, irmão de Tibiriçá. No dia 9 de julho de 1562, invadiram São Paulo de Piratininga no episódio conhecido como "Cerco de Piratininga", saqueando e incendiando construções e deixando dezenas de mortos sob os gritos de "jukaí karaíba!" ("morte aos europeus"), apesar de expulsos pela atuação de João Ramalho, já casado com Bartira (filha de Tibiriçá), que evitou que decapitassem os padres jesuítas e constituindo na maior prova da aliança entre os 3 grupos (Europeus colonizadores, Europeus jesuítas e Tupininquins). Apesar disto, os Guaianases trouxeram uma peste que acabou por matar boa parte da população e danificar as plantações, fazendo como vítima o próprio Tibiriçá, morto em dezembro. 

Para tentar acabar com os conflitos, Anchieta e Nóbrega partiram no mesmo ano para a capital dos Tamoios, Iperoig (atual Ubatuba), para negociar com o líder Cunhambebe. Porém, a atuação extremamente hostil dos Tupinambás sequestraram Anchieta em sua canoa enquanto Nóbrega foi com Cunhambebe para São Vicente. Após meses de negociações, o Armistício de Iperoig foi assinado em 1563 e Anchieta libertado, cessando-se os conflitos. Porém, a Confederação dos Tamoios foi refundada meses depois, desta vez apoiada pela França, que passou a atuar mais em território fluminense e acabaram de vez expulsos por Mem de Sá em 1567 num contra ataque feito a partir de Bertioga.

Em 1570, foi promulgada a Lei de Ordenanças, que estabelecia os princípios para as expedições ao interior dos novos territórios. Foi baseando-se nela que os paulistas passaram a organizar as primeiras "bandeiras", como ficaram conhecidas; o primeiro bandeirante foi João Ramalho, que desbravou o início do rio Tietê e depois retirou-se para o Vale do Paraíba, onde faleceu em 1580. Seguiram-se diversas outras expedições, todas partindo ou de São Paulo, ou de São Vicente, inicialmente buscando novos lugares mais seguros para estabelecimento de vilas (fugindo de novos possíveis ataques tamoios); como de costume em quase todo o Planeta na época, era comum escravizar o inimigo em caso de derrota, e assim foi feito por ambos os lados em pequenos conflitos ocorridos. Em dados de 1548, havia em São Paulo cerca de 3 mil escravos ou prisioneiros de guerra, número muito irrelevante ante às estimativas de população dos índios inimigos, como por exemplo os cerca de 100 mil Carijós. Apenas 600 pessoas, dentre as milhares vivendo no território, eram nascidas em Portugal, sendo todos os restantes filhos da nova terra.

Os novos jesuítas, que substituíram Anchieta e Nóbrega na gestão, passaram a ficar descontentes com a atuação dos paulistas, que passaram a assumir o papel de colonizador do interior do país, fato que em outras regiões era feito pelos próprios jesuítas; outro motivo do descontentamento era o fato que muitos paulistas descendentes de europeus tinham como antepassados integrandes da Ordem dos Cavaleiros Templários, muitos dos quais judeus convertidos que partiram nas Cruzadas visando a expulsão dos islâmicos da Europa e retomada do território conquistado por eles (que chegaram a governar até a Espanha). 

Em 1612, personalidades importantes de São Paulo enviaram uma carta ao rei repudiando as atitudes dos jesuítas, e o rei retornou afirmando que em São Paulo, quem deveria de governar era o povo e não os jesuítas, mais uma vez contraditando o que ocorria sobretudo no Sul. Os jesuítas, perdendo a batalha por meios legais, e dotando-se dos meios de produção de livros e documentos, passaram a divulgar na Europa textos em que chamavam os paulistas de "povo bárbaro" e os bandeirantes de "enviados do Diabo". Daí também surgiu a expressão de que os bandeirantes matavam os indígenas de forma deliberada como é divulgado até hoje, pois praticamente não haviam mais europeus puros vivendo em São Paulo e participando das bandeiras na época, e sim eram quase todos mestiços portugueses/tupiniquins. Também passaram a divulgar coisas completamente contraditórias, como histórias a respeito de canibalismo e poligamia por parte dos Tupiniquins (que eram contrários a isto), o que ocasionou hoje a forma pejorativa que chamar uma pessoa ou um lugar de "tupiniquim" hoje tem (sinônimo de atrasado, retrógrado).

Novos combates se seguiram nos anos seguintes, enquanto os bandeirantes conquistavam e desbravavam terras de Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, passando a buscar ouro e pedras preciosas após notícias de que haviam sido encontradas na parte espanhola da América, chegando até mesmo no Oceano Pacífico no litoral do Peru, enquanto os jesuítas tomavam à força indígenas para a catequese e para combater os bandeirantes, resultando em graves conflitos em 1621 e 1640, quando os paulistas tentaram promulgar decretos que expulsavam os jesuítas do território. Em 1641, outro fato torna a relação entre os paulistas com o reino e a Igreja Católica mais complicada, quando o vereador Amador Bueno (descendente do índio Tibiriçá) foi eleito Rei de São Paulo, que buscava então se não outra alternativa a se tornar um novo país, fato que acabou não se concretizando ante as ameaças contrárias, apesar do reconhecimento da soberania paulista pelo Rei D. João IV, pelos grandes feitos realizados na conquista de território e combate aos inimigos.

A aclamação de Amador Bueno, descendente do cacique Tibiriçá, como Rei de São Paulo, é resultado da completa integração entre europeus e tupiniquins. Créditos: Oscar Pereira da Silva.

Houve mais um grande conflito em 1683 e uma nova tentativa de expulsão dos jesuítas em 1687 (que não se concretizou). A paz só foi declarada em 1690, quando os jesuítas concordaram a catequizar apenas os índios que se dispusessem a sê-lo (sem forçá-los a isso, portanto). Cessam então os documentos que eram divulgados a repeito dos paulistas, mesmo após as bandeiras continuando por mais um século e ocasionando episódios como a Guerra dos Emboabas.

Portanto, a história de bandeirantes brancos, portugueses e que cometeram um genocídio indígena trata-se, sobretudo, de uma campanha de marketing realizada pelos jesuítas, que na época não surtiram efeitos legais, porém hoje sim. Ao buscarem documentos a respeito da colonização do Brasil, os historiadores do início do século XX que criaram toda a base do ensino de História nacional hoje, encontraram apenas os documentos da Ordem Jesuítica, que se preservaram pois eram guardados na Europa, ao contrário dos documentos paulistas que acabaram sendo destruídos nos sucessivos ataques a São Paulo e ao incêndio da biblioteca de São Vicente. Das principais nações indígenas de São Paulo, os Tupiniquins passaram a constituir uma unidade só com os colonizadores, perdendo esta denominação por conta da mesticidade; após a Confederação dos Tamoios, os Tupinambás e Guaianases foram fugidos para o Rio de Janeiro, enquanto os Aimorés fugiram pro Sul. Não houve uma extinção indígena por parte dos bandeirantes, e os índios escravizados eram os inimigos, que também fizeram como escravos muitos paulistas.

As bandeiras e monções, realizadas pelos bandeirantes, tinham o envolvimento direto de milhares de pessoas - dentre elas, índios. Créditos: Almeida Júnior.

Portanto, ao vandalizar a Estátua de Borba Gato (morto em 1681 por um saco de esmeraldas, atirado de um precipício após um empurrão) ou o Monumento Às Bandeiras (projetado por Victor Brecheret e que demorou 33 anos para ser construído, inteiramente em granito), os criminosos acabam por depredar a sua própria história, que sem a presença dos bandeirantes seria escrita de uma forma totalmente diferente e possivelmente não trazendo bons resultados, vide os países colonizados pela Espanha serem, em geral, menos desenvolvidos que São Paulo. Ferem também o trabalho de artistas verdadeiros, que realizavam obras para a eternidade, e não meros rabiscos que buscam apenas a autoafirmação de certo grupo ideológico que diz "lutar contra o sistema", e acabam lutando contra o próprio lugar onde vivem, fazendo com que nós, trabalhadores e estudantes que buscamos um futuro verdadeiramente melhor para São Paulo, arquemos com as consequências de termos que pagar alguns milhares de reais pela reparação das obras e termos vergonha do ocorrido em nossa capital, curiosamente horas após dois candidatos à prefeitura na eleição de 2016 terem se declarado contra as pichações.

Por Thales Veiga.