terça-feira, 9 de janeiro de 2018

O Formidável Caminho do Peabiru, estrada ancestral que ligava o Atlântico ao Pacífico

Há muitas coisas que fizeram parte da vida dos nossos antepassados, mas que pouco ou nada conhecemos. No caso de São Paulo, cuja história colonial vem sendo aos poucos redescoberta e enriquecida, esse fenômeno acontece muito mais frequentemente.


Já falamos aqui do componente judaico entre os pioneiros paulistas, da expansão da nossa cultura pelo continente, das vestes antigas e dos Bandeirantes, que podem ser encaixados no grupo de maiores exploradores da história humana.

Porém, algo ainda mais impressionante são as ligações entre os indígenas de São Paulo e a Civilização Inca, algo que permaneceu mesmo após a chegada do homem branco. O fato é que havia uma estrada que ligava São Vicente até o Império Inca. Seu nome era Peabiru, tupi para «Caminho do Gramado Amassado».

A estrada, descrita detalhadamente, entra para a historiografia europeia pela primeira vez em 1697, no livro «Historia de la conquista del Paraguay, Rio de la Plata y Tucumán», escrito pelo jesuíta Pedro Lozano. Mas a nomenclatura «Caminho do Peabiru» já era usada em São Vicente antes mesmo de Portugal tomar posse oficialmente dessas terras e oficializar a vila.

Rotas do Peabiru. Em Azul, territórios outrora pertencentes à Capitania de São Vicente/São Paulo.

Considerando-se que a atual Cubatão era o ponto de início, a via partia daí (podendo se conectar a São Vicente por barco), subia pelo vale do rio Mogi para chegar a São Paulo, Itu, Sorocaba e então cortava o Paraná, parte do Mato Grosso do Sul, até chegar no Paraguai e depois na Bolívia, onde prosseguia até Cusco. (SOLARI, 2010)

Nos trechos paulistas, paranaenses, sul-mato-grossenses e paraguaios a estrada era basicamente um trecho de mata cortada com a terra batida, de modo que, para evitar alagamento, o chão era forrado com gramíneas que impediam o crescimento do mato alto e evitavam embarramento do caminho. A partir da Bolívia, o caminho era parte das sofisticadas estradas incas.

Adicionalmente, ramais se conectavam à estrada principal. Os mais importantes eram os que partiam de Cusco até Tacna e regiões limítrofes, os que partiam de Cananeia, os que partiam do oeste de São Paulo, a partir do rio Paraná, e que interligavam todo o interior paulista, e os que partiam de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e os que ligavam Potosi até a estrada principal, porém havia muitos outros. (SOLARI, 2010)


Estrada Inca pavimentada nos Andes Bolivianos. Foto de JCraft5.
A origem dessa impressionante estrada ninguém sabe, realmente. Os guaranis e tupiniquins acreditavam que havia sido construída por uma entidade chamada Sumé, que chegara caminhando sobre as águas e ensinara muito a esses povos, abrindo o caminho rumo ao interior e chegando até os Andes, onde interagira com os incas e em seguida se retirara para não mais voltar. Mas uma das hipóteses mais aceitas pela História diz que foram ou índios guaranis, tupis ou jês (o pesquisador Igor Chmyz aponta que os jês estavam por aqui 2 mil anos antes dos guaranis, por isso há maior chance de terem sido os autores) que criaram caminhos que, unidos, formaram o Peabiru. Outra diz que foi feita pelos incas para espalhar sua cultura pelas terras de Pindorama, porém, embora o intercâmbio cultural tenha ocorrido, seu maior uso teria sido o comércio.

Guaranis de São Sebastião. Sua cultura continua viva no litoral paulistas, mas os nativos ainda sofrem em meio aos avanços urbanos e é evidente o conflito entre o modo de viver ancestral e o modo de viver da Civilização Paulista. Foto de http://girlsonboard.tumblr.com.
Ao contrário do que possa pensar o senso comum, os indígenas se utilizavam do comércio antes da chegada dos europeus no continente. E o Caminho do Peabiru era usado para tal. Por conectar várias nações pré-colombianas, a estrada era animada por intensas rotas comerciais. Os índios litorâneos forneciam sal e conchas decorativas, enquanto os do interior forneciam feijão, milho e penas de aves (como tucanos), enquanto que os incas alimentavam o comércio com objetos de cobre, bronze, prata e ouro. Como comprovação dessas trocas, há um machado andino de cobre descoberto em Cananeia.

Além do machado andino e do gado, as culturas partilham certos artefatos e palavras. Acerca deles, cita a Revista Nova Democracia, separando-os por área de conhecimento:

• Na astronomia: os meses do ano são relacionados à lua (Jaci, em tupi-guarani e Killa, no idioma quíchua, falado pelos incas).
• Na estatística: o ainhé (cordão de cipó guarani) é semelhante ao quipu (cordão com nós, dos incas, usado para contagem).
• Na música: grupos guaranis adotaram a flauta de pã dos Andes.
• Nas armas: a macaná guarani (clava, borduna) é muito parecida com a maqana dos incas.
• Na denominação de fauna, flora: sara (espiga, em guarani; milho em quíchua); cui (animal roedor, nos dois idiomas); jaguar, jaguara (felino, nos dois idiomas); mandioca (guarani) e ioca ou iuca (quíchua), suri (ema, nos dois idiomas).

Resultado de imagem para antara andes
Flauta de pã dos andes em anúncio no Ebay.
Ainda convém citar que, por todo o percurso, havia marcações astronômicas que indicavam solstícios, equinócios, pontos cardeais e constelações. Os indígenas da América Portuguesa eram conhecedores da astronomia e da cartografia. Sérgio Buarque de Hollanda (2017) diz que os mapas indígenas feitos no próprio solo possuíam um luxo de minúcias, como quedas d’água representadas por círculos, rios irregulares representados por linhas quebradas ou por um desenho semelhante a um saca-rolhas, plantas locais detalhadamente desenhadas exatamente onde eram abundantes, afluentes cuja extensão é representada exatamente como se verifica e montanhas cujo formato era fielmente reproduzido nos desenhos. E foi graças a essa cartografia desenvolvida que o europeu conseguiu percorrer e se estabelecer em todo o continente.

Os Bandeirantes, por exemplo, além de terem aprendido com os índios a se guiar pela mata, a identificar animais, a reconhecer a flora comestível, a andar mais rapidamente e seguramente pelo sertão, além de ocultar seus passos etc., também adotaram durante as Bandeiras os caminhos ancestrais usados pelos indígenas. Posteriormente, principalmente em São Paulo, esses caminhos deram lugar a rodovias e ferrovias, como Sorocabana, Mogiana, Paulista e Noroeste, tal a ligação que se estabeleceu entre eles e os Paulistas.

O historiador Jaime Cortesão diz ainda que foi via Peabiru que os Bandeirantes chegaram até os Andes, interagindo com a cultura da região, isso já no século XVII. Uma das mais marcantes experiências foi a de Raposo Tavares na sua Bandeira dos Limites, em que percorreu o interior do continente, chegando aos Andes e seguindo para Belém do Pará até voltar para São Paulo, calcorreando uma distância maior que a percorrida por Marco Polo desde Veneza até a China.

Há muito ainda por descobrir, não só dos séculos de uso desse caminho antes da chegada dos europeus, mas também do tempo em que ele foi usado pelos pioneiros paulistas, artífices da nossa nação, para andarilhar pela América do Sul. A nossa história se enriquece e se completa a cada dia que passa.

Por Lucas Pupile

Referências

A Desconhecida Maravilha Indígena. A Nova Democracia, 2003. Disponível em <https://goo.gl/mCmqXt>
A Verdadeira Autoria do Peabiru. Gazeta do Povo, 2008. Disponível em <https://goo.gl/pP3NQx>
HOLLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017
Revista Superinteressante. Edição 329. Fevereiro de 2014. São Paulo. Editora Abril. p. 34.
SOLARI, P. Ymaguaré mokôi po ha mbohapy. Paraty. Associação Artístico-Cultural Nhandeva. 2010

Um comentário:

  1. Gostei,pesquisar esta rota,da clareza e amplia a historia que não é contada nas escolas.Blog Caiaque Aventura e Natureza.Encontrei uma peça lítica trabalhada em forma de pirâmide aqui em minha região de Joinville nas minhas expedições.

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