sábado, 19 de agosto de 2017

Bandeirantes Genocidas?


O ódio de alguns grupos atuais aos bandeirantes advém de uma campanha marqueteira que buscou desqualificá-los e destorcer fatos da história. Créditos: Folha.

Você certamente já ouviu falar esta famosa frase, ou ainda que "as Bandeiras tiveram dois lados" e que "os índios foram dizimados pelos portugueses". Vamos desfazer estes e outros mitos, e para começar: você sabe o que foram as Bandeiras?

Para entendermos as Bandeiras, primeiro temos que entender a própria formação do território paulista. Como já vimos em textos publicados aqui mesmo na página (e que deixarei o link de alguns ao final deste), os primeiros europeus chegaram ao que viria ser chamado de São Paulo por volta do fim dos anos 1400, oriundos não só de Portugal, mas de países como Espanha, Holanda e territórios que viriam a formar Alemanha e Itália. Alguns destes primeiros habitantes paulistas foram Bartolomeu Fernandes, chegando aqui em 1497, e João Ramalho, náufrago de 1513.

Ao contrário do que se pensa, os indígenas não se constituíam de um único grupo, nem muito menos eram totalmente desprovidos de uma estrutura de civilização. Haviam diversas nações, cada qual com seus costumes e seu governo, e um dos maiores erros que cometemos é generalizar todos como iguais. Em São Paulo, o território estava distribuído entre os Carijós (Cananeia), Guaianases (Vale do Paraíba), Puris (Serra da Mantiqueira), Tupinambás (litoral de Bertioga ao RJ) e Tupiniquins (litoral de Cananeia a Bertioga e Planalto de Piratininga), além de esparsas tribos no "Sertão Paulista". Destas nações, Tupiniquins e Tupinambás se encontravam em guerra há anos, principalmente pelas divergências ideológicas (os Tupinambás defendiam, por exemplo, o canibalismo e a poligamia).

Os europeus, quando aqui chegaram, passaram não a combater os nativos, mas sim se integrar no dia a dia deles. Bartolomeu Fernandes, por exemplo, aliou-se aos Carijós e tornou-se rapidamente um importante líder local; João Ramalho, após um breve contato com os Guaianases, passou a viver com os Tupiniquins, construindo uma estreita amizade com o líder Tibiriçá: juntos, os 3 fundaram São Vicente em 1517. Quando da chegada da esquadra de Martim Afonso, havia um temor que a ocupação pudesse gerar um conflito com os nativos, fato que não se concretizou graças ao trabalho de João Ramalho. Naqueles primeiros anos, Martim Afonso e seu irmão Pero Lopes, João Ramalho e Tibiriçá passaram a trabalhar juntos para a constituição de um lugar mais civilizado. Martim Afonso, ao chegar, oficializou como vila do Reino Português o assentamento de São Vicente e a aldeia dos Campos de Piratininga (hoje, São Paulo), ambas em propriedade Tupiniquim.

Porém, nem tudo eram flores. Bartolomeu Fernandes, descontente com o governo oficial português de Martim Afonso, retornou a Cananeia, onde juntamente com os Carijós (de origem mestiça, advindos do sul do país) e com os espanhóis, liderados por Ruy Garcia de Moschera e tendo como capital a vila de Icapara (hoje, um bairro de Iguape), organizaram a Guerra de Iguape, invadindo, saqueando e destruindo as vilas de São Vicente e Piratininga entre 1534 e 1536.

A oficialização da aldeia de São Vicente como vila por Martim Afonso em 1532 é um dos símbolos da parceria entre europeus e Tupiniquins, formadora da identidade, cultura e território paulistas com reflexos até os dias atuais. Créditos: Benedito Calixto.

Logo após, houve a chegada dos primeiros jesuítas em terras vicentinas. A ordem, fundada em 1534 e oficializada em 1540, era um braço da Igreja Católica que visava a conversão dos indígenas para divulgação e ampliação da atuação da igreja no novo continente. Desembarcaram em terras nacionais em 1549, na Bahia, chegando a São Paulo no mesmo ano. A atuação no território paulista foi liderada por José de Anchieta e Manoel da Nóbrega, e um tanto diferente das demais. Ao contrário do que ocorreu em outros lugares, sobretudo no Sul, em São Paulo os jesuítas não conseguiam exercer o papel de liderança dominadora que almejavam, e aliado a isto, os espíritos conciliadores de Nóbrega e Anchieta burlavam as determinações da Igreja e se aliaram a João Ramalho, Martim Afonso e Tibiriçá na constituição do novo país. Tal fato gerava amplo descontentamento por parte do governo português, que passou a olhar para os paulistas (data desta época o apelido) com maus olhos e cautela, e ocasionou algumas represálias como a retirada do título de vila de Santo André (comandada por Ramalho). As tenções aumentaram quando o governador paulista nomeou João como chefe militar, em 1562.

Os índios Tupinambás, inimigos declarados há anos e vendo o perigo da expansão dos Tupiniquins aliados aos colonizadores, se juntaram aos Aimorés e Guaianases na "Confederação dos Tamoios", criada em 1556 e que visava a completa aniquilação dos inimigos. Tal fato se agravou quando num dos embates, os Tupiniquins venceram um grupo de Tupinambás e levaram como prisioneiro o chefe Cairuçu para Santos, que acabou por falecer na prisão logo após. São Vicente então passou a ser atacada também pelos Guaianases, cujo chefe era Piquerobi, irmão de Tibiriçá. No dia 9 de julho de 1562, invadiram São Paulo de Piratininga no episódio conhecido como "Cerco de Piratininga", saqueando e incendiando construções e deixando dezenas de mortos sob os gritos de "jukaí karaíba!" ("morte aos europeus"), apesar de expulsos pela atuação de João Ramalho, já casado com Bartira (filha de Tibiriçá), que evitou que decapitassem os padres jesuítas e constituindo na maior prova da aliança entre os 3 grupos (Europeus colonizadores, Europeus jesuítas e Tupininquins). Apesar disto, os Guaianases trouxeram uma peste que acabou por matar boa parte da população e danificar as plantações, fazendo como vítima o próprio Tibiriçá, morto em dezembro. 

Para tentar acabar com os conflitos, Anchieta e Nóbrega partiram no mesmo ano para a capital dos Tamoios, Iperoig (atual Ubatuba), para negociar com o líder Cunhambebe. Porém, a atuação extremamente hostil dos Tupinambás sequestraram Anchieta em sua canoa enquanto Nóbrega foi com Cunhambebe para São Vicente. Após meses de negociações, o Armistício de Iperoig foi assinado em 1563 e Anchieta libertado, cessando-se os conflitos. Porém, a Confederação dos Tamoios foi refundada meses depois, desta vez apoiada pela França, que passou a atuar mais em território fluminense e acabaram de vez expulsos por Mem de Sá em 1567 num contra ataque feito a partir de Bertioga.

Em 1570, foi promulgada a Lei de Ordenanças, que estabelecia os princípios para as expedições ao interior dos novos territórios. Foi baseando-se nela que os paulistas passaram a organizar as primeiras "bandeiras", como ficaram conhecidas; o primeiro bandeirante foi João Ramalho, que desbravou o início do rio Tietê e depois retirou-se para o Vale do Paraíba, onde faleceu em 1580. Seguiram-se diversas outras expedições, todas partindo ou de São Paulo, ou de São Vicente, inicialmente buscando novos lugares mais seguros para estabelecimento de vilas (fugindo de novos possíveis ataques tamoios); como de costume em quase todo o Planeta na época, era comum escravizar o inimigo em caso de derrota, e assim foi feito por ambos os lados em pequenos conflitos ocorridos. Em dados de 1548, havia em São Paulo cerca de 3 mil escravos ou prisioneiros de guerra, número muito irrelevante ante às estimativas de população dos índios inimigos, como por exemplo os cerca de 100 mil Carijós. Apenas 600 pessoas, dentre as milhares vivendo no território, eram nascidas em Portugal, sendo todos os restantes filhos da nova terra.

Os novos jesuítas, que substituíram Anchieta e Nóbrega na gestão, passaram a ficar descontentes com a atuação dos paulistas, que passaram a assumir o papel de colonizador do interior do país, fato que em outras regiões era feito pelos próprios jesuítas; outro motivo do descontentamento era o fato que muitos paulistas descendentes de europeus tinham como antepassados integrandes da Ordem dos Cavaleiros Templários, muitos dos quais judeus convertidos que partiram nas Cruzadas visando a expulsão dos islâmicos da Europa e retomada do território conquistado por eles (que chegaram a governar até a Espanha). 

Em 1612, personalidades importantes de São Paulo enviaram uma carta ao rei repudiando as atitudes dos jesuítas, e o rei retornou afirmando que em São Paulo, quem deveria de governar era o povo e não os jesuítas, mais uma vez contraditando o que ocorria sobretudo no Sul. Os jesuítas, perdendo a batalha por meios legais, e dotando-se dos meios de produção de livros e documentos, passaram a divulgar na Europa textos em que chamavam os paulistas de "povo bárbaro" e os bandeirantes de "enviados do Diabo". Daí também surgiu a expressão de que os bandeirantes matavam os indígenas de forma deliberada como é divulgado até hoje, pois praticamente não haviam mais europeus puros vivendo em São Paulo e participando das bandeiras na época, e sim eram quase todos mestiços portugueses/tupiniquins. Também passaram a divulgar coisas completamente contraditórias, como histórias a respeito de canibalismo e poligamia por parte dos Tupiniquins (que eram contrários a isto), o que ocasionou hoje a forma pejorativa que chamar uma pessoa ou um lugar de "tupiniquim" hoje tem (sinônimo de atrasado, retrógrado).

Novos combates se seguiram nos anos seguintes, enquanto os bandeirantes conquistavam e desbravavam terras de Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, passando a buscar ouro e pedras preciosas após notícias de que haviam sido encontradas na parte espanhola da América, chegando até mesmo no Oceano Pacífico no litoral do Peru, enquanto os jesuítas tomavam à força indígenas para a catequese e para combater os bandeirantes, resultando em graves conflitos em 1621 e 1640, quando os paulistas tentaram promulgar decretos que expulsavam os jesuítas do território. Em 1641, outro fato torna a relação entre os paulistas com o reino e a Igreja Católica mais complicada, quando o vereador Amador Bueno (descendente do índio Tibiriçá) foi eleito Rei de São Paulo, que buscava então se não outra alternativa a se tornar um novo país, fato que acabou não se concretizando ante as ameaças contrárias, apesar do reconhecimento da soberania paulista pelo Rei D. João IV, pelos grandes feitos realizados na conquista de território e combate aos inimigos.

A aclamação de Amador Bueno, descendente do cacique Tibiriçá, como Rei de São Paulo, é resultado da completa integração entre europeus e tupiniquins. Créditos: Oscar Pereira da Silva.

Houve mais um grande conflito em 1683 e uma nova tentativa de expulsão dos jesuítas em 1687 (que não se concretizou). A paz só foi declarada em 1690, quando os jesuítas concordaram a catequizar apenas os índios que se dispusessem a sê-lo (sem forçá-los a isso, portanto). Cessam então os documentos que eram divulgados a repeito dos paulistas, mesmo após as bandeiras continuando por mais um século e ocasionando episódios como a Guerra dos Emboabas.

Portanto, a história de bandeirantes brancos, portugueses e que cometeram um genocídio indígena trata-se, sobretudo, de uma campanha de marketing realizada pelos jesuítas, que na época não surtiram efeitos legais, porém hoje sim. Ao buscarem documentos a respeito da colonização do Brasil, os historiadores do início do século XX que criaram toda a base do ensino de História nacional hoje, encontraram apenas os documentos da Ordem Jesuítica, que se preservaram pois eram guardados na Europa, ao contrário dos documentos paulistas que acabaram sendo destruídos nos sucessivos ataques a São Paulo e ao incêndio da biblioteca de São Vicente. Das principais nações indígenas de São Paulo, os Tupiniquins passaram a constituir uma unidade só com os colonizadores, perdendo esta denominação por conta da mesticidade; após a Confederação dos Tamoios, os Tupinambás e Guaianases foram fugidos para o Rio de Janeiro, enquanto os Aimorés fugiram pro Sul. Não houve uma extinção indígena por parte dos bandeirantes, e os índios escravizados eram os inimigos, que também fizeram como escravos muitos paulistas.

As bandeiras e monções, realizadas pelos bandeirantes, tinham o envolvimento direto de milhares de pessoas - dentre elas, índios. Créditos: Almeida Júnior.

Portanto, ao vandalizar a Estátua de Borba Gato (morto em 1681 por um saco de esmeraldas, atirado de um precipício após um empurrão) ou o Monumento Às Bandeiras (projetado por Victor Brecheret e que demorou 33 anos para ser construído, inteiramente em granito), os criminosos acabam por depredar a sua própria história, que sem a presença dos bandeirantes seria escrita de uma forma totalmente diferente e possivelmente não trazendo bons resultados, vide os países colonizados pela Espanha serem, em geral, menos desenvolvidos que São Paulo. Ferem também o trabalho de artistas verdadeiros, que realizavam obras para a eternidade, e não meros rabiscos que buscam apenas a autoafirmação de certo grupo ideológico que diz "lutar contra o sistema", e acabam lutando contra o próprio lugar onde vivem, fazendo com que nós, trabalhadores e estudantes que buscamos um futuro verdadeiramente melhor para São Paulo, arquemos com as consequências de termos que pagar alguns milhares de reais pela reparação das obras e termos vergonha do ocorrido em nossa capital, curiosamente horas após dois candidatos à prefeitura na eleição de 2016 terem se declarado contra as pichações.

Por Thales Veiga.

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